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Lúpus: Um estudo Fenomenológico de um processo de autoconhecimento

 

Danuta D. Pokladek **

 

Introdução

 

         Pretendo, aqui, relatar um caso de atendimento de uma pessoa com lúpus eritematoso sistêmico (LES), a luz dos ensinamentos da psicoterapia fenomenológica existencial.

         Venho seguindo como orientação de trabalho, a sistematização que vem sendo realizada pelo grupo de profissionais da SOBRAPHE.

         Essa orientação tem me ajudado na minha prática, clínica, trazendo muitas contribuições no sentido de fundamentar a análise do ser, que concordo com Piccino, a psicoterapia deve realizar.

         Através da leitura, cursos e supervisões tenho refletido e avaliado constantemente, o meu trabalho e concluído o quanto ainda preciso conhecer a respeito da psicoterapia fenomenológica existencial.

         Compreendo o papel do supervisor como facilitador dos processos de crescimento do terapeuta, ou seja, na construção de sua própria postura e identidade profissional.

         O caso que vou apresentar aqui, o modo de perceber e se relacionar do paciente com lúpus – é extenso e complexo a partir de dois pontos fundamentais.

1.     fazer um breve resumo de alguns conteúdos das sessões terapêuticas.

2.     analisá-la à luz das dimensões da existência segundo o fundamento fenomenológico-existencial.
 

** Mestre em Psicologia da Saúde pela Universidade Metodista de São Paulo; psicóloga educacional e psicoterapeuta de abordagem fenomenológica-existencial; diretora e presidente do Instituto PsicoEthos e fundadora do P.E.M. (Núcleo de Pesquisa e Estudos Merleau-Pontyanos).

 

O grande desafio para mim, enquanto psicoterapeuta de Elaine, que é como vou chamar esta pessoa, foi, em primeira instancia, tomar em consideração “o estar diante do dado”, de que não era exatamente o lúpus que eu precisava entender, num primeiro momento, mas, sim, a pessoas que estava me apresentando o lúpus[1]que era, agora, parte construtiva do seu modo de ser.

     Assim sendo, vou apresentar o caso em três momentos.

 

1.     Apresentar a história de Elaine, a partir do resumo dos relatos das sessões terapêuticas segundo Piccino (p. 31);

2.     Analisar o que se passou com ela, através de algumas das principais dimensões do existir no mundo. Apesar de todas as dimensões se interligarem, algumas delas convergiam em todos os seus depoimentos; são elas:
 

·        A dimensão das possibilidades: o homem é um ser de possibilidades;

·        A dimensão valorativa: a ação humana e efetividade constroem e são também resultado dos valores de uma pessoa;

·        A dimensão do corpo: uma força – o lúpus – que se instaurou e modificou sua relação com o corpo e que continua atuante, importantemente, até agora;

·        A dimensão da temporalidade: o quanto o passado se apresentava no momento presente, forte e doloroso.

 

O trabalho psicoterapêutico seguiu quatro aspectos, segundo as orientações que venho recebendo da SOBRAPHE.

1.     Fazer “mostração”,[2] do modo de ser, de Elaine, de seu núcleo essencial que sustenta o seu jeito de ser com os entes e com pessoas através da “análise da estrutura dinâmica da sua relação com o mundo”, Piccino (p.5).

2.     A partir dos relatos do seu cotidiano, apontar as dimensões de sua existência mais envolvidas com as crises de lúpus, e que facilitavam e/ou dificultavam suas manifestações;

3.     Mostrar o que ocorreu durante o processo terapêutico, fundamentalmente a aprendizagem de Elaine foi a seguinte: teve esclarecidos seus modos de relação com o mundo, e, em função das ressignificações que fez, modificadas suas atitudes.

4.     Avaliar os resultados: até o presente momento, as manifestações das crises desapareceram. Elaine redigiu uma carta com forma de depoimento, apontando que retomou a sua vida, após o processo de terapia.

 

I.                   ALGUNS DADOS SOBRE ELAINE]
 

Idade: 33 anos, casada; morava no quintal da casa de sua mãe; não tem filhos; profissão: administradora de empresas (hoje é assistente da Diretoria).

Essa descrição com palavras do cotidiano e que revela uma consciência ingênua que é a condição para captar o fenômeno, pois é uma consciência anterior a qualquer classificação e explicação.

Pasmo de perguntar, até encontrar o que o outro diz: é isto mesmo!

Promove-se o encontro antes “o que era velado” para ser desvelado e o vinculo terapêutico se fortalece.

O lúpus manifestou-se após uma séria de crise de depressão do marido (ele sofre de depressão bipolar).

 

II.                OS TRÊS MOMENTOS DO CASO

(Os três momentos vão ser apresentados concomitantemente).
 

Lembro-me do modo que Elaine chegou até mim em 27/08/96. Veio acompanhada de uma senhora e um homem: mãe e irmão.

Durante um período de três meses, ela veio sempre acompanhada por alguém. Elaine tinha medo de manifestação das crises e, por isso, não dirigia o veiculo.

No seu discurso inicial ela me disse que estava vindo porque seu médico tinha indicado psicoterapia por causa do lúpus que tinha se manifestado em novembro de 94.

Até esse diagnostico tinha tratado a doença como artrite.

O lúpus a jogou na cama, com os seguintes sintomas: “manchas no rosto, vômitos, febre, dores nas articulações, muito sono e movimentos musculares não correspondentes com a ação que deveria ser realizada”.

Muito emocionada conto que tinha conhecido duas pessoas com lúpus. Ambas tinham falecido, pois a doença tinha comprometido os rins.

Uma delas morreu com 29 anos e era bem próxima: era colega de escola desde a época do colégio.

Na sua ética, sua amiga fazia muitas extravagâncias: mesmo não podendo tomar sol, ia à praia, para fazer regime de emagrecimento, suspendia o uso de corticóide (medicamento utilizado para o tratamento) e não fazia a dieta adequada que deveria ser rica em proteínas.

Elaine foi procurar um reumatologista, fez o primeiro exame e constatou o lúpus eritematoso sistêmico: o fator antinucleo – FAN – era de 6400.

Devido à crise afastou-se do seu trabalho por quatro meses. Começou com corticóide/terapia e recuperou-se rapidamente.

Em março de 1995 voltou a trabalhar. Retomou seu trabalho num ritmo tão frenético, que acabou tendo várias outras crises e, claro, vários outros afastamentos do trabalho (15 a 20 dias cada um).

Apesar de ter um organismo forte, jovem e livre de vícios, os excessos que cometia no trabalho impediam a plena recuperação das crises. Até conseguiu algum controle sobre a doença. Mas, no momento, em que me procurou, o que estava debilitado, arrebentando, era o seu lado emocional.

Toda energia e procedimentos terapêuticos, até então, estavam voltados para o seu lado orgânico.

Elaine dizia que não agüentava a situação de ficar boa por semanas, e em outras, ter até que tirar licença.

Retornou ao medico que lhe disse que a orientação medica era a de indicar os corticóides e o “controle de excessos” e que as constantes crises exigiam que ela juntasse, ao tratamento médico a psicoterapia.

Em março de 1996 uma forte depressão junto com a crise de lúpus. Então: “Acho que não vou vencer”. Resolveu, então, procurar a terapia. Ela me disse “A doença é brava e por isso estou aqui. Essa doença virou minha vida de perna para o alto”.

Eu até o momento nunca havia escutado NASA sobre esta doença e me perguntei: e agora?

Mas pensei: o que está se apresentando parar mim? Quais são os fenômenos e o que eles mostram?

Eu estava diante de uma pessoa-lúpus, que tinha seu modo próprio de ser, tendo esta doença “sua lupice”

Todo seu ser e seu modo de se vincular ao mundo estavam se mostrando nas vivencias referidas ao lúpus: seu corpo, suas emoções, a presença da finitude, da morte e do medo de morrer.

Meu trabalho foi, exatamente, trazer à luz o que estava ali, fazer a monstração disso tudo.

O medico dizia: o tratamento é esse “corticóide e controle de abusos”.

Penso como o existencialismo que não há separação corpo e mente, tudo está em relação. Então, perguntei: Se o corticóide não está sendo suficiente para controlar as crises, o que, além do orgânico, poderia estar provocando as crises e o quadro que ela estava chamando de depressão?

Ela está dizendo para mim: “estou sem chão, sem domínio da situação a doença virou minha Cida de perna para o alto”.

Logo no inicio, Elaine disse que não queria fazer psicoterapia, pois sempre conseguiu resolver tudo sozinha, sempre teve domínio de seus problemas, disse também que estava ali somente, obedecendo ao seu médico, sendo fiel a sua orientação, pois achava que não precisava fazer psicoterapia.

Alem de estar obedecendo, afirmou seu outro motivo fundamental para estar ali “sou pobre, preciso trabalhar. Estou deprimida e não posso perder meu emprego”

Apontei a Elaine que estava me revelando com essas falas:

·        Que estava espantada com uma situação nova: sempre tudo sozinha e agora estava diante de acontecimentos que fugiam de seu controle;

·        Que não acreditava em psicoterapia, mas tinha vindo porque era obediente. Esta obediência estava ligada a confiança que tinha no médico. O que isso quer dizer? Quer dizer que quando confia, obedece;

·        Que, o que estava dizendo era que sua ultima saída era por um caminho que nunca acreditara: a terapia;

·        Que entra em um caminho que não acredita, empurrada por uma necessidade máxima: continuar a trabalhar para sobrevivência e continuar vivendo de seu jeito: resolver tudo sozinha;

·        Que coloca altas expectativas na psicoterapia: tem que dar certo;

A mensagem implícita era: como sempre dei conta de tudo, agora você tem que dar conta de mim. Percebi que ela esperava dos outros o que ela fazia com ela mesma.

(Ai, já está toda a dinâmica dela de atrelamento com o mundo)

O que estava implícito em sua fala era, para mim, muito claro sua credibilidade está vinculada a confiança.

Seu discurso mostrou toda a condição de sua existência, o envolvimento de todas as dimensões (da existência), principalmente as dimensões afetiva e valorativa.

Outro dado mostra como é Elaine, é o seguinte:

Seu marido sofria de depressão bipolar e de tempos em tempos, tinha crise. A última crise que ele teve foi muito forte e ele foi internado. Ela me contou que estava inconformada com isso, porque sempre superou com ele todas as suas crises e nesta última, não conseguiu superar, nem evitar sua internação. Ao falar isto, não levantava os olhos do chão, estava toda encolhida e com o rosto muito contraído.

Estavam ai, os seguintes ingredientes de seu jeito de ser:

a.     O estar assumindo como sua responsabilidades que não eram suas (a depressão dele se devia a uma historia dele);

b.     Sentir-se culpada (por não ter segurado, ou evitado a crise de depressão dele);

c.      O mesmo ingrediente que já aparecera na fala anterior> “sempre segurava todas e agora havia falhado”.

Novamente sentia-se derrotada e enfraquecida, além de sentir-se culpada. (A dimensão valorativa apresentava o seu modo de julgar e ser no mundo).

     Elaine trabalhava como administradora de uma grande empresa onde alem da empresa, administrava todos os bens particulares dos donos da empresa (fazendas de gado). Era a primeira a chegar, a última a sair e ganhava pouco mais de R$ 1.200,00.

     Pelo modo como me contou tudo isso – agitada, nervosa, balançando as mãos, levantando o peito – percebi que se sentia explorada, (era a primeira a chegar e a última a sair), e que não sabia colocar os limites nesta situação.

     Elaine conta que a sua rotina de trabalho “era sufocante“, não parava de receber pedidos e solicitações e sua mesa estava sempre lotada de pastas e documentos. As pessoas falavam de um modo meigo e delicado, faziam um elogio, ou pediam com um sorriso e ela não conseguia deixar de executar a tarefa pedida.

Elaine estava, então, me revelando com essa falar que:

- a invasão de sua mesa de trabalho significava o quanto ela era pessimista em se deixar ser explorada.

- não conseguia “dizer não”, porque precisava de muito pouco para aceitar as tarefas e executá-las. Poucas moedas eram suficientes para as pessoas a ganharem e conseguirem que ela executasse o serviço pedido;

- a dimensão dos afetos se revelou: ela se preocupava muito em atender as expectativas dos outros sem prévio respeito consigo própria para obter um pouco de delicadeza, alguns elogios e reconhecimento

Nessa altura eu me perguntei: de onde vem esse modo de se relacionar?

Elaine me conta que trabalhou desde muito cedo, já com quinze anos, vendia bijuterias e fazia faxina para ajudar no orçamento de casa. Com dezessete anos, foi balconista, juntou dinheiro e comprou um “fusquinha”, que ficou na garagem, pois ainda não havia tirado a carta de motorista. Com dezessete anos e meio, arranjou um emprego em um escritório de contabilidade. Sempre foi independente e sempre levou uma vida mais madura que a idade que tinha.

Fui, para tornar cada vez mais clara sua dinâmica, apontando seus sentimentos e o seu modo de se relacionar. Ela estava revelando que:

·        Sempre foi “pau para toda obra”, trabalhava e não se importava em ajudar muito no orçamento de casa.

·        Aí, aos dezessete anos já existe uma preocupação com o futuro: adquirir o carro, antes da carta significa: o futuro é agora (ai está a presença da dimensão de temporalidade).

A leitura que fiz foi a de que o lúpus estava fazendo-a olhar para o fato de que não da para saber tudo: dominar o futuro, abarcar todas as tarefas pedidas no trabalho e tomar conta de toda a família.

Elaine me relatou, também, que aos dezessete anos, os seus irmão já eram casados e sobraram: “eu, uma mãe frágil e um pai bêbado”. (sic)

Falar do pai trouxe um mundo de lembranças.

Contos cenas horríveis de sua infância em função da agressividade do pai. Presenciou situações humilhantes como:

·        O pai agredindo e batendo em sua mãe;

·        Agressiva e violentamente espancando os seus irmãos. Ela, como era a “raspinha de tacho”, não chegou a apanhar.

·        O pai quebrando tudo em casa, principalmente, loucas.

Chegavam a ter de dormir fora de casa, porque o pai, quando bêbado, os expulsava. Uma certa noite até tiveram de dormir na delegacia de policia. Quando eles retornavam, ele quebrava toda louca.

Elaine relatou esses fatos com muita emoção, chorando muito (Fiz mostração de seu sofrimento, acolhendo-a ).

Ela colocou, também, que ficou moca ouvindo seu pai xingá-la de “puta imoral”. Ele não a espancava, mas dizia que ela saia todos os seus dias de casa, “para dar por ai, em vez de ir trabalhar”;

Contar estes fatos, também, a emocionavam muito. Demonstrava muita raiva e, com olhos cheios de lágrimas, me disse: “Eu tive a presença de um pai, era apenas um farrapo”

Este trecho de sua história me revelou:

- qual era o seu universo de valores e a fonte dele: a relação com o pai, em particular, e a família como um todo.

- o quanto o passado se apresentava no momento presente, forte e doloroso (dimensão temporal).

Era claro para mim que eu estava diante dos seguintes fatos:

- o sofrimento frente a violência que permeou sua infância, decido a atitude do pai alcoólatra.

- a constatação das dificuldades de uma mãe que não dava conta sozinha da situação.

A decepção com o pai, que foi “um farrapo”.

A afetividade de Elaine se constituiu nesses contexto (dimensão afetiva).

Um dado interessante na historia foi o que relatou sobre a reação dos irmãos quando eram jovens – adultos. Quando solteiros, ao presenciarem essas cenas, batiam no pai justificando que faziam isso em nome da preservação física e moral da mãe.

Elaine desaprovava a atitude dos irmãos. Ela nunca encostou a Mao no pai, porque sempre acreditou que uma ação agressiva provoca uma reação igual ou pior que a primeira ação, afinal, ele era seu pai.

O modo como Elaine resolvia a questão, quando o seu pai brigava, era assim: aproveitando que tinha estatura alta e forte, literalmente, carregava o pai até o quarto, trancava-o lá e o deixava gritar, xingar, esbravejar até ficar rouco ou quieto. Então, abria a porta e o encontrava dormindo, as vezes na cama, as vezes no chão.

O jeito que ela lidava com esse pai bêbado me mostrava os valores que orientavam suas atitudes: não era certo agredir o pai pelo papel de pai que ele tinha. Ela tinha respeito pelo protótipo pai.

Os sentimentos e as atitudes dela mostram os valores e os afetos que norteavam e norteiam suas ações. Ela resolvia os problemas de sua vida, agindo como agia com o pai: carregando, fechando em um recinto e dando continuidade a seus afazeres. Quer dizer, seu modo de ser era o modo de “carregar no colo”. Ela impedia a violência do pai, carregando-o no colo. Assim, também fazia com as pessoas no trabalho: carregava-os, cuidando de todos seus negócios. Mas, carregar é pesado.

Quanto ao lúpus, ela também não o estaria carregando e fechando em seu corpo? (Dimensão de Corporeidade).

Os acontecimentos da vida de Elaine foram pipocando na terapia.

Ela se lembra do dia em que completou dezoito anos. Era um domingo, estava se arrumando para trabalhar, pois tinha resolvido ganhar uns extras fazendo imposto de renda. Seu pai, ao vê-la se arrumando disse: “você pensa que sou bobo? Hoje é domingo, sua puta! Você pensa que vais me enganar? Você vai dar por ai”.

Elaine não abriu sua boca e foi trabalhar.

Poucas horas depois, recebeu a noticia de que seu pai havia falecido.

Ao falar isso, Elaine chora e diz: “ele morreu, acreditando que era uma puta”. Ele dizia para minha mãe: “você vai ver o desgosto que ela vai te dar. Ela será sua encrenca!”.

Existia, portanto, na historia dela com o pai, um fato importante não resolvido anunciado por ela. Ele morreu pensando que era o ela não era.

Novamente ela me mostrou os motivose o universo de valores que estavam dando a direção de seus sentimentos e de suas ações.

- tinha que ser perfeita. Não podia falhar porque precisava mostrar ao mundo que era pessoa de valor e não uma puta. Tornou-se extremamente prestativa, trabalhando por muitas pessoas, deixando a pilha de sua mesa subir e subir e dando conta de tudo.

- jamais poderia mostrar que seria uma encrenca. Para mostrar que não era puta e uma enorme encrenca, sempre mostrava alegria e disposição e nunca mostrava desgosto.

Elaine tinha comprado o pacote que o pai lhe vendeu: você não presta, é puta, é uma encrenca. Então, tinha de provar o contrário. Para isso teve de fazer um esforço enorme durante a vida toda: tomar para si e carregar tudo que aparecia.

É interessante também, o que ela não tinha percebido até então. “o modo doente” de seu pai. Ele era alcoólatra, tinha idéias radicais em que depositava uma crença absoluta e pronta. Na verdade, tinha idéias delirantes. E ela ficava à mercê dessa fala dele sem usar um critério para olhar e avaliar a desordem de seu pai.

A terapia, fundamentalmente, a ajudou a olhar o que ela não via.

Diz a ela a apresentação do que ela me trazia:

- que comprou a “profecia do pai”, apesar de ele fazer seus julgamentos não se baseando nos fatos, mas em seu delírio: que ela assimilou este conceito “de puta” e para provar que a profecia não se concretizaria se empenhou em trabalhar em excesso e em ser amada e bem avaliada, sendo boa e prestativa,

Foi através dessa clareza que Elaine entendeu a patologia do pai e ressignificou uma enorme quantidade de fenômenos de sua vida.

Entendeu que poderia ser liberada dessa culpa e, consequentemente desse enorme esforço. Entendeu que não era necessário arcar com tudo e atender sempre todas as necessidades de todo mundo.

Então, passou a prestar atenção no quanto ela, comandada pela sua historia de relação com o pai, entrava nas solicitações que as pessoas lhe faziam sem nenhum critério.

Elaine mostrava que fazia parte do seu modo de ser a condição de ser prestativa com todos, ou seja, com os familiares, com os amigos, com a empresa. Ela entendeu o modo com que montava suas relações com os outros em função de Suas questões afetivas, a partir de três pontos que convergiam:

a.         Atendia a todas as solicitações e expectativas dos outros.

b.         Dava conta e executava tudo que lhe era atribuído, com eficiência.

c.          E experienciava culpa quando não conseguia executar perfeitamente.

Com relação a culpa, por exemplo, ocorreu de Elaine acreditar que, ela, se estivesse mais atenta, poderia ter evitado a crise de depressão co marido que o levou a internação.

De novo, ela não leva em conta a situação do outro. Havia um histórico dele. Mas ela comprou a culpa como se a doença dele tivesse sido causada por ela, como se fosse dela.

Do mesmo modo que assumia muitos compromissos para provar que não era puta, assumiu a responsabilidade pela crise do marido, porque achava que andava um pouco desligada e não viu que essa crise era diferente das anteriores que ela sempre dera conta.

Com esta questão de ter que “provar” que não é puta e de haver prometido dar conta de tudo e ser prefeita, Elaine carregava nas costas toda a empresa, as fazendas dos donos (ela não ia embora do trabalho enquanto não terminasse o prometido – que estava em sua mesa), a família, a doença do marido, etc.

O que isso acarretava?

Durante o seu expediente que, muitas vezes, durava de 12 a 14 horas, ela deixava de se alimentar adequadamente e de cuidar do lúpus.

Ela era incapaz de dizer não, “pois tinha de provar que dava conta de carregar” tudo. Só que nessa condição desmerecia seu corpo “lupento”.

Ficava ansiosa, não dormia direito, não se alimentava. E “não cumprido” provocava-lhe muita ansiedade: não agüentaria decepcionar as pessoas. Assim, entrava cada vez mais no stress. Com o decorrer do processo terapêutico, ela compreendeu a origem do seu “dar conta, e ter de provar” (o dado originário de tudo): sua historia com o seu pai, com o seu marido e o fato de que ela não via a realidade de que havia uma historia do outro que ela não levava em conta.

Então começou a “indicar o não” para as pessoas. E o fez de seu modo particular, levando em conta o seu jeito de ser não agressivo. Ou seja, resolvia as questões no dialogo, explicitando de modo claro o porquê do não.

Ou, quando cabia, dizendo simples e objetivamente: Não!

Segundo ela, o estar mal com os outros, ainda era uma aprendizagem não vencida, ela não sabia lidar com as pessoas hostis e agressivas.

Esse modo se relacionava com a experiência com o pai alcoólatra.

Atualmente, ela consegue visualizar a situação de modo “a separar” quem esta hostilizando. Antes ela entrava em pânico de medo dos extremos, que presentificavam o pai. Um dia, ela chegou e disse: Você não sabe o que eu fiz! Eu descobri!

Durante seu processo terapêutico, Elaine entendeu o que queria dizer com: não ter pai, mas, sim um “farrapo”. Conta que não conheceu o pai que jantava com os filhos, que dava presente de Natal e dava um tapa na bunda. Como ela experenciou esse pai que, provavelmente, seus irmãos conheceram, ela criou um pai ideal. Para poder experenciá-lo, como um modo de presentificá-lo, “assumiu ser o pai” de todo mundo.

Elaine percebe que, como um modo de suprir esta falta, idealizou o pai que em realidade nunca existiu e se colocou no lugar dele.

O que se mostrou a mim:

·        O quanto a forca desse passado era re-apresentado no “agora”, o quanto a importância de seu futuro esteve e está comprometido com este passado. O seu modo de resolver tudo estava destinando essa maneira de ser no mundo, ser o próprio pai, carregando seus filhos, o mundo.

·        Dar conta de todas as coisas, carregar tudo, estava relacionado com o lúpus que estava tomando conta do seu corpo.

Lidando com isso tudo, a terapia possibilitou a ressignificação dos fatos, e o olhar para outras direções, mas o olhar de uma pessoa que é, no mundo, “lupsticamente”.

O dado de seu lúpus era: o ter um projeto de ser que se fez tão pesado e a desgastou mais do que a forca de suas potencialidades.

A pergunta que eu me tinha feito no inicio era: será que era só trabalho que a desgastava?

O processo revelou que seu stress envolvia um desgaste valorativo e afetivo. O lugar do stress estava, também, em como ela estava vivendo a lúpus.

Em suas ultimas sessões, Elaine relatou que a terapia possibilitou:

1.     O entendimento de seu modo de montar suas relações afetivas precisava de toda essa dedicação para ser a pessoa correta, atender todas as convocações, porque sem elas não podia realizar sua “provação” contra a profecia do pai.

2.     A descoberta dos limites e da necessidade de respeito por si mesma.

3.     Perceber que seu stress estava relacionado com o dado originário – a não clareza dessa relação com seu pai; atrelada a todo universo valorativo e afetivo.

4.     A necessidade da mudança de seus valores para redimensionar suas relações afetivas.

5.     Que aprendesse a conviver com o lúpus, com o ser lupenta, respeitando-se como pessoa.

Hoje Elaine continua trabalhando na mesma empresa no horário comercial, entra na hora certa e não permanece após o expediente.

Ganha muito mais, pois fez uma reunião com a diretoria da empresa e negociou seu salário.

Arranjou um jeito de, com o Fundo de Garantia do marido, comprar uma casa que, embora humilde, permite que o casal tenha seu espaço livre da presença constante de sua família.

Atualmente, ela e o marido já reformaram a casa e planejam adotar um filho.

 

III. O QUE ELAINE APRENDEU NO PROCESSO TERAPÊUTICO APESAR DE CONSTITUIR O LÚPUS EM SEU CORPO

 

A música do Gonzaguinha “Eu apenas queria que você soubesse” retrata em um dos seus trechos. “Pois tenha a saúde que aprendeu com a vida. Atitude de recomeçar é todo dia, toda hora e se respeitar, sua força e fé, se olhar bem fundo até o dedão do pé.”

Elaine aprende o quanto o lúpus abriu possibilidade de experienciar a questão do limite por si própria.

O fato de ela ter assumido ser um pai ideal, que não existia na vida real, fez com que Elaine carregasse o mundo para presentificá-lo em seu ser.

Este modo de ser no mundo redimensionou o lúpus, espalhando-o em todo seu corpo, atrelando as crises vulcânicas que o ativavam, de maneira a paralisar o seu cotidiano.

A partir do momento do desvelamento do “dado originário”, Elaine passou a ressignificar sua vida, apontando os limites para o mundo, diluindo, desta maneira, as crises lúpicas. A dimensão da existência ser de possibilidade, o desejo e o querer sair dessa, abriu um horizonte, tomando sua vida mais digna e feliz!

Enquanto terapeuta, aprendi através de Elaine a valorizar ainda mais a vida e o seu cotidiano, a minha gratidão por ter compartilhado junto com ela, a luta pela vida!

 

ANEXO 1

 

LÚPUS: UM PROCESSO DE AUTO-CONHECIMENTO

 

Há três anos eu não sabia quais eram os sintomas do lúpus, sabia sim do que se tratava, pois conhecia duas pessoas que haviam falecido por causa “dele” (uma delas bem próxima). Ouvir falar sobre lúpus não nos dá nem um milésimo da dimensão dos danos que esta doença pode causar num ser humano, o pior deles é o moral.

Enfim trás anos atrás eu me encontrava muito mais preocupada com a saúde de meu esposo, que sofre de depressão bipolar do que comigo, pois ele vinha apresentando sintomas e comportamentos de que estava prestes a entrar numa crise séria, eu, por minha vez, já apresentava dores articulares fortíssimas, tonturas e manchas arroxeadas nas faces, mas estava me tratando com clinico feral que já havia comprovado, por exames, lúpus eritematoso sistêmico, mas tentava controlar a doença de modo ambulatorial. Não preciso dizer que, para mim, o problema de meu esposo parecia muito mais grave que o meu, fator suficiente para que não me preocupasse muito nem entendesse a gravidade da minha doença. Meu esposo enrou na tal “crise”, esteve internado no Hospital das Clinicas e eu fui seu esteio, fiquei à frente de toda sua internação, acompanhei de perto todo o doloroso processo de “voltar a vida” bravamente encabeçado por ele.

Passados dez dias da internação dele e mais dez de recuperação, sua vida voltou ao normal e eu acordei para o meu pesadelo. Bruscamente me vi afastada do trabalho, inicialmente por 15 dias, depois por um mês, dois meses e por fim fiquei quatro meses totalmente afastada do trabalho.

As reações foram as mais complexas e diferentes entre si, eu aceitei bem a doença, porque faz parte da minha personalidade não fugir ao que o destino e Deus me impõem, mas foi tudo muito difícil. Quase que de repente, eu me vi numa cama, sendo amparada por minha mãe em todas as atitudes necessárias para que um ser humano sobreviva com dignidade, como banho, refeições, sentar e levantar, etc.

Foi nesse período de afastamento que eu conheci realmente o lúpus, como sou uma pessoa com organismo forte, não possuo vícios (não fumo e não bebo) isso me ajudou bastante fisicamente. No primeiro estagio da doença, os medicamentos agem quase que de forma imediata e fazem acreditar que tudo voltou ao normal, porém seu organismo não mais responde da forma que respondia anteriormente, você engorda, passa a ter estrias por todo o corpo, seu cabelo cai, seu raciocínio fica lento e sua memória fica muito prejudicada.

Com o passar do tempo e o tratamento seguido à risca, os sintomas foram desaparecendo e o conhecimento da doença aumentando muito, o que faz com as crises passem ser cada vez mais raras.

Ai, então, eu me dei conta de que a maior seqüela deixada pelo “furacão Lúpus” em mim, era emocional, eu já não tinha discernimento para resolver pequenos problemas domésticos, e no trabalho, então, tudo era muito complicado, eu tinha um medo enorme de perder o emprego, e ai, então, percebi a necessidade urgente de procurar ajuda.

Por intermédio de uma amiga, conheci a professora Danuta Pokladek. Foi complicado marcar uma hora, pois seu atendimento era muito concorrido, mas contei com toda sua atenção.

No dia 27/08/96, comecei uma nova etapa, depois de conhecer um mínimo do imenso universo da fenomenologia, aprendi que sempre fui e continuo sendo forte, que devo impor limites para que as pessoas me respeitem, não só com relação ao meu problema de saúde, mas também porque sou humana e preciso respirar, preciso de tempo para mim mesma, para amar meu marido, para sentir prazer com tudo que amo e que antes relegava a segundo plano.

Aprendi a identificar com clareza a antecedência meus limites físicos e emocionais, conseguindo com estas atitudes manter o lúpus totalmente sob controle, e, desde então, nunca desencadeei nenhuma crise.

Aprender que o “não” também pode ser uma prova de amor e carinho para com as pessoas ao meu redor me fez amadurecer uma segurança muito grande e diminuir o medo da vida, das pessoas e o mais importante, da doença.

O lúpus causa sintomas diversos que sempre me amedrontaram, pois as tonturas, insegurança no andar, falta de coordenação motora em lugares públicos foram me retirando do convívio social, pois em casa eu me sentia segura, até parar de guiar automóvel eu parei, hoje posso dizer que venci a primeira etapa, estes medos se dissiparam, sei, e não tenho me iludir que muitas outras virão, melhores, piores. Enfim, aprendi a esperar que elas cheguem para então conhecê-las uma a uma, sei que estou mais forte que nunca, que posso enfrentá-las e, melhor, tenho grandes chances de vencê-las.

Eu sempre vi em mim uma mulher forte, com muitos valores, talvez enxergasse uma força maior do que a que eu realmente possuo, pois achava que podia resolver todos os problemas meus, de todos meus familiares, enfim, me achava imbatível.

Hoje sei que ninguém pode ser responsável por tudo e por todos, podemos sim ajudar uns aos outros, numa troca que faz bem principalmente ao coração, mas tudo tem que ser uma troca, energia, amor, carinho, apoio, etc.

A fenomenologia me ensinou a dizer “não”, mas um não bem colocado, um não as coisas ruins, ao que me faz mal, que me incomoda, que me invade, sem para tanto ter que brigar, me desgastar e magoar as pessoas que eu amo. Essa maneira de conduzir minha vida me deu mais paz de espírito para encarar tudo, inclusive a doença;

Ao longo de minha vida, conheci pessoas que faziam terapia e sempre achei que se tratavam de pessoas fracas, incapazes de resolver os próprios problemas, tentavam repassá-los para oura pessoa. Que engano.

          A terapia causou uma verdadeira revolução na minha vida, me proporcionou um auto conhecimento tão grande, que consigo entender melhor até as atitudes alheias. Hoje quando me deparo com problemas, não hesito em saber que serei capaz de resolvê-los. O problema de saúde de meu marido, que antes me assustava tanto, hoje me inspira cuidados, mas cuidados movidos de tal forma pelo amor que não permitem que o medo tome conta de mim. O meu problema de saúde me desperta cuidados especiais, e o único que me ronda com relação a ele é o imprevisto, o susto com o aparecimento de alguns sintomas que antes já me deixava acamada hoje me leva imediatamente a procurar um especialista.

          Se hoje eu pudesse aconselhar alguém, qualquer que fosse seu problema de sobrevivência, eu indicaria com certeza que procurasse um (a) psicólogo (a) bem preparado, porque se este profissional não o ajudasse a encontrar seu caminho, pelo menos o ajudaria a SE conhecer melhor, e a respeitar seus limites, pois, quaisquer que sejam as fontes dos nossos problemas as respectivas soluções estão dentro de nós mesmos.

 

ANEXO II

ELAINE

 

          Querida Danuta.

 

Parece que os acontecimentos conspiram para que não nos vejamos mais. Infelizmente o trabalho tem me absorvido de forma total e absoluta, a crise nas bolsas do exterior que atingiram as bolsas brasileiras de forma impiedosa tem dado muita dor de cabeça aos profissionais do ramo.

Hoje nós temos um horário ás 19 horas e acabo de ser convocada juntamente com meus diretores para uma reunião extraordinária na CVM (Comissão de Valores Mobiliarios), no Rio de Janeiro, às 18 horas.

Constrangida e profundamente chateada peço desculpas e gostaria de deixar a partir de agora meu horário vago, para não mais atrapalhá-la, tão logo a poeira abaixe, voltarei a lhe telefonar.

Comigo está tudo ótimo, minha casa está em fase final de acabamento, ficando lindinha, minha saúde está ótima e o Van maravilhoso. Acho que estou na minha melhor fase.

Mais uma vez, desculpe-me e obrigada pela compreensão.

Com todo o meu carinho e respeito

Beijos

Elaine
 
 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BOSS, M. Análise Existencial – Daseisanalyse. Daseinsanalyse 2, 1976, p. 5-24.

BOSS, M. Encontro com Boss. Daseinsanalyse, publicacao da Associação Brasileira de Daseinsanalyse, 1976b.

CYTRYNOWICZ, D. Psicoterapia: uma aproximação Daseinsanalitica. In Daseinsanalyse, 4, 1978, p. 27-48.

HEIDEGGER, m. Todos nos ... ninguém: um enfoque fenomenológico do social. Apresentação e introdução: Sólon Spnoudis; tradução e comentário: Dubec, M. Critelli. São Paulo: Mores, 1978.

Martins, J. & BICUDO, M. A. Estudos sobre existencialismo, fenomenologia e educação. São Paulo: Moraes, 1983.

 



[1]Lúpus (LES) é uma doença crônica, ainda de causa desconhecida, na qual o sistema de defesa (sistema imune) sofre alterações importantes, pois afeta a pele, as articulações, os rins e vários órgãos. É uma das mais importantes doenças auto-imunes, pois num determinado momento da vida de uma pessoa, o seu sistema imunológico deixa de reconhecer constituintes do próprio corpo, rejeitando-os e passando a atacá-los como se fossem estranhos.

[2]Frase de Josefina Daniel Piccino – texto Psicoterapia – Análise do ser – apostila do curso de Formação, arquivada no Instituto Sobraphe